"O direito é criado pelo homem, é um produto tipicamente humano, um artifício sem entidade corporal, mas nem por isso menos real que as máquinas e os edifícios." - Gregorio Robles

2.6.20

O Judiciário é uma confusão dos diabos na pandemia

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Leio aqui que a "Comissão Externa da Câmara sobre ações contra o Coronavírus promove audiência pública na quinta-feira (4) sobre a atuação do Poder Judiciário na pandemia da Covid-19". Isso é importante. Há poucos dias escrevi sobre como o Judiciário tem batido cabeça nesta pandemia. Faltou uma orientação única desde o início, coordenando o regime de funcionamento dos tribunais. Mas foi um barata-voa, cada tribunal fazendo de um jeito e emitindo atos e atos normativos avulsos, deixando o jurisdicionado mais perdido que cego em tiroteio.

Vejam por exemplo esta decisão, emitida por vara cível do Rio de Janeiro: "Considerando a pandemia decorrente da disseminação do COVID 19, bem como a Resolução 313/19, Atos Normativos TJRJ 08/2020 e 09/2020 e Provimento CGJ nº 30/2020, impondo a suspensão de prazos e das audiências pelo prazo de 60 dias e reconhecendo as dificuldades para a atividade forense de forma tradicional, (...)". Corretíssima a suspensão das atividades; isso não se discute. Mas veja-se a quantidade de normas (lato sensu) às quais a decisão precisou aludir. Se quisermos ser rigorosos, devemos "caçar" cada um desses atos e analisá-los com cuidado para não cair em casca de bananas, exceções, minúcias e detalhes que, conforme o caso, podem implicar em uma fatal perda de prazo. Todavia, tais espécies normativas (de novo, lato sensu), por leis não serem, não têm a publicidade e facilidade de localização necessária, de modo que o pobre jurisdicionado é obrigado a enfrentar os dédalos dos portais dos tribunais em busca de esclarecimento.

Há o CNJ, é verdade. É dele a citada Resolução 313 acima. Que aliás já foi alterada diversas vezes, vigorando no momento a mudança trazida pela Portaria Nº 79 de 22/05/2020. Entendem o que eu digo? Não deveria ser assim. A seção Atos normativos referente à pandemia no portal do conselho é cena de terror: uma pletora de portarias, portarias conjuntas, resoluções, recomendações, recomendações conjuntas e provimentos de fazer a cabeça girar, além, é claro, dos atos, resoluções e despachos dos próprios tribunais superiores. É pra deixar qualquer um doido. Nesse cenário, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro se jacta de ter produzido mais de 12 milhões de movimentações desde o início do regime diferenciado em meados de março, entre sentenças, decisões, despachos e atos cumpridos por servidores. Evidentemente um Judiciário produtivo é a meta em qualquer Estado Democrático de Direito; mas faz sentido que a atividade jurisdicional, que sempre deixou a desejar em tempos de normalidade, seja tomada de afã produtivista justamente em meio a uma pandemia global? 30.000 mortes e meio milhão de casos só no Brasil enquanto escrevo. Exatamente quem está preocupado com andamento processual enquanto os mortos caem lá fora? Sobretudo porque os prazos processuais estão suspensos e qualquer decisão fica "congelada", servindo apenas para acumular ansiedade e expectativa. É claro que a vida não para e há as questões urgentes, mas para isso sempre existiu o regime de plantão.

Penso que estamos diante de uma contradição aqui. As cabeças pensantes do serviço público falam muito em desburocratização e eficiência. Esse pensamento ecoa em muito a ideologia neoliberal, a do desmanche do Estado, e já falamos disso no blog- não entremos agora neste mérito. O que importa aqui é ver como a desburocratização e a eficiência são tomadas de forma relativizada e parcial quando convém. Antes de tudo é preciso dizer que nem sempre a "pulverização" -a administração policêntrica, como se diz, veja-se dentre outros "Uma teoria do direito administrativo" de Gustavo Binenbojm- é o melhor meio de obter esses objetivos. Às vezes centralizar é mais rápido e certeiro. No caso aqui tratado: não seria suficiente um único ato baixado pelo CNJ, regulando pormenorizadamente as diversas necessidades da atividade jurisdicional, com efeito vinculante para os demais tribunais que apenas regulamentariam o ato em suas respectivas jurisdições? Dois atos apenas -o do CNJ e o regulador local-, simples assim. Sou ingênuo? Estarei delirando?, queira Deus não um sintoma de covid.

Como quer que seja vale refletir. Aqui vem o necessário debate acerca dos limites do CNJ e sua relação com os demais tribunais, bem como a boa vontade desses em se sujeitar -se é que é esse o nome- àquele. Há suscetibilidades que não toleram ser melindradas, afinal. Não estou dizendo que os tribunais sejam "rebeldes" com o CNJ, longe disso, mas parece-me que uma coesão maior é sempre possível e, claro, desejável.

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