"O direito é criado pelo homem, é um produto tipicamente humano, um artifício sem entidade corporal, mas nem por isso menos real que as máquinas e os edifícios." - Gregorio Robles

15.6.20

Óbvio ululante: Forças Armadas não podem dar golpe

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Procurei a autoria da manjada pergunta "Que tempos são esses em que é preciso defender o óbvio?". Geralmente é atribuída a Brecht, mas como não me conformo com as informações duvidosas que pululam por aí dei uma pesquisada. O mais perto que cheguei foi esta citação ("When something seems 'the most obvious thing in the world' it means that any attempt to understand the world has been given up") em "Brecht on Theatre: The Development of an Aesthetic" (aqui), todavia a pesquisa em "Brecht On Theatre" no Google Books não retornou o mesmo resultado (aqui). Que seja. Sigamos no escuro.

De Brecht ou não é uma excelente frase e só pude pensar nela quando da prolação da decisão monocrática do ministro Luiz Fux do STF em medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.457/DF, movida pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Diante do histrionismo dos bolsonaristas e suas reiteradas ameaças, veladas ou não, de golpe de Estado (autogolpe no caso, pois são eles próprios que estão no poder, tornando tudo ainda mais tragicômico), foi necessário dizer, em essência: as Forças Armadas não podem dar golpe, mesmo que tal venha a ser o sonho dos bolsonaristas. É o óbvio que precisa ser dito, o óbvio ululante, e aqui já pisamos em terreno certo: remete a Nelson Rodrigues.

Como se vê na decisão (vale lembrar, monocrática, ad referendum do plenário), o escopo da ADI é delimitar o "alcance semântico das atribuições conferidas às Forças Armadas pelo artigo 142 da Constituição". Ocorre que tal artigo não dá a menor margem para intentonas golpistas. Daí dizer o ministro Fux que "em uma leitura originalista e histórica do artigo 142 da Constituição, a expressão 'garantia dos poderes constitucionais' não comporta qualquer interpretação que admita o emprego das Forças Armadas para a defesa de um Poder contra o outro". Sobre a esdrúxula tese de se considerar as Forças Armadas um poder moderador (!) giza a decisão que "no desenho democrático brasileiro, a independência e a harmonia entre os poderes devem ser preservadas pelos mecanismos pacíficos e institucionais de freios e contrapesos criados pela própria Constituição", de modo que "inexiste no sistema constitucional brasileiro a função de garante ou de poder moderador: para a defesa de um poder sobre os demais a Constituição instituiu o pétreo princípio da separação de poderes e seus mecanismos de realização" e que "considerar as Forças Armadas como um 'poder moderador' significaria considerar o Poder Executivo um superpoder, acima dos demais".

Conclui Fux pela impossibilidade de uma "intervenção militar constitucional" e repudia "o discurso que, a pretexto de interpretar o artigo 142 da Constituição, encoraja uma ruptura democrática", frisando inclusive que o presidente da República em tese "comete crime de responsabilidade se atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário e incitar os militares ao descumprimento da lei". Em síntese: as Forças Armadas são "órgãos de Estado, e não de governo, indiferentes às disputas que normalmente se desenvolvem no processo político". Mas não é mesmo o óbvio ululante? Tema de clareza meridiana. A íntegra da decisão está disponível abaixo para download.

Também aqui acho oportuno destacar duas coisas. Em primeiro lugar, o postulante da ADI, no caso o PDT, não está errado ao pedir que o Supremo "chova no molhado". Pelo contrário, o sinal amarelo está aceso e é urgente repisar verdades constitucionais. Errados estão aqueles que têm martelado intenções golpistas. A ADI é apenas uma reação. Em segundo lugar, ocorre-me que às vezes é preciso mesmo ser redundante. Há coisas que nunca são demais repetir (como "eu te amo", para vocês românticos incorrigíveis). Em matéria de direitos humanos e da defesa da ordem democrática é sempre melhor pecar pelo excesso do que pela omissão; é o caso aqui. Ainda que repetindo o que já seria de curial sabença, a decisão de Fux tem caráter didático.

Eu poderia destacar um terceiro ponto porém tenho receio de adentrar um prognóstico sombrio. Mas já que encaramos a realidade de frente, como Trotsky no "Programa de Transição", vou dizê-lo: é a singela observação de que quem se dispõe a dar um golpe de Estado não se preocupa com a Constituição nem com a interpretação que o Supremo faz dela. Ao fim e ao cabo -nenhuma referência ao cabo do soldado- é o argumento da força bruta sobre a elegante retórica jurídica. Prefiro acreditar que não chegaremos a esse ponto. Fato inconteste é que se a república brasileira atravessar o (curto, queira Deus) período de bolsonarismo sem maiores sobressaltos terá dado prova de enorme amadurecimento democrático e institucional.

Decisão Luiz Fux - ADI 6.457/DF

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