"O direito é criado pelo homem, é um produto tipicamente humano, um artifício sem entidade corporal, mas nem por isso menos real que as máquinas e os edifícios." - Gregorio Robles

25.6.20

Água privatizada, Papai Noel e lei da selva

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Tem gente que venderia até a mãe, não é assim que dizem? Para os quais o apego ao vil metal fala mais que tudo. O dissidente satírico Voinovitch dizia do dirigente soviético Brejnev que este era "ávido por tudo que brilha e nunca saciado desse gosto". Há mesmo pessoas que são assim. Mesmo que não queiram para si, para o próprio bolso, não conseguem conceber as relações sociais exceto pela lógica da mercancia e do lucro. Acreditam que tudo tem um valor, monetariamente falando. Coisas para quem pode pagar e com as quais alguém vai enriquecer, ainda que tal coisa seja tão básica quanto a água.

Não é um exemplo fortuito. Escrevo com base na aprovação do novo marco legal do saneamento básico pelo Senado Federal (vale dizer, a matéria já passou pela Câmara e, tendo sido um projeto de iniciativa do governo bolsonarista, será sancionada sem sobressaltos). Disseram a propósito que querem privatizar as águas, e é por aí mesmo. Observamos aqui a atuação da mentalidade neoliberal, a que, em seu preconceito e estreiteza, enxerga o Estado como irremediavelmente ineficaz e portanto coloca todas suas fichas na iniciativa privada. Ocorre que, como diz Eros Grau, "o Estado, apesar dos pesares, é ainda, entre nós, o único defensor do interesse público", de modo que "mesmo o mero enfraquecimento do Estado conduz, inevitavelmente, à ausência de quem possa prover adequadamente o interesse público e, no quanto isso possa se verificar, o próprio interesse social" (in "O Direito posto e o Direito pressuposto"). Chega a ser uma platitude repetir isso, não? O empresário quer lucro. Não há problema em "correr atrás" disso em uma economia de mercado, mas não se pode perder de vista que nem tudo na vida é monetizável. Bens e serviços essenciais, elementares mesmo à própria dignidade da pessoa humana (fundamento constitucional da República, preciso lembrar?), como saúde, educação, água e saneamento, estariam bem melhor longe das garras privatistas.

Causa espanto ver no link acima que a população com acesso à água tratada passou de 82,4% para apenas 83,5% de 2011 a 2017, um desempenho abaixo do pífio. Decerto a regulação do setor precisa ser atualizada. Inúmeros campos e aspectos da sociedade brasileira fazem jus às devidas melhorias. Mas daí a concluir que o atraso é necessariamente culpa do Estado vai uma larga distância. Aliás, vejam vocês: ao menor sinal de problema, a quem o empresário recorre? Vai ao Estado de pires na mão. O BNDES serve para isso mesmo. A Oi, egressa da Telebrás desestatizada, quase faliu na mão da brava iniciativa privada. Na crise financeira de 2008 os bancos foram socorridos por Obama. Estado "mínimo" para quem mesmo? Só quando convém? Percebem a manipulação ideológica disso? Desgraçadamente a triste figura do "pobre de direita" engole esse discurso.

Estado "mínimo" é tão concreto quanto Lobo Mau ou Papai Noel. Voltemos a Eros Grau, na mesma obra: "O mercado não seria possível sem uma legislação que o protegesse e uma racional intervenção, que assegurasse a sua existência e preservação". É isso. Sem o Estado é a lei da selva inclusive em detrimento do próprio mercado- podem imaginar a distopia em que nos meteríamos se dependesse dos "liberais"? Logo mais privatizarão o ar que respiramos. Tantas respiradas tantos reais. Não pagou, suspensão do serviço e nome no Serasa.

Coca-Cola, fique longe da minha água. No princípio "o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas", para usarmos o jargão bíblico tão em voga, ainda que hipocritamente, nestes tempos. Não é possível tratar um recurso tão primordial como um "produto" de mercado. Evidentemente a infraestrutura e a tecnologia necessárias têm custos e precisam ser remuneradas de uma forma ou outra -as torneiras não são supridas magicamente, é claro- e uma certa dose de concorrência pode impulsionar melhorias, mas o bem em si e suas formas de gerenciamento e fornecimento devem ser regidos sob imperativos públicos e sociais. E não de lucro privado.

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