"O direito é criado pelo homem, é um produto tipicamente humano, um artifício sem entidade corporal, mas nem por isso menos real que as máquinas e os edifícios." - Gregorio Robles

21.7.21

Ideologias, intromissão estatal e a morte do tigre

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Dizer que não há mais ideologias já é em si uma manifestação de ideologia, diz Zizek. Está em toda parte. Desconfiem de alegações de neutralidade ou de isenção. O bolsonarismo deu exemplos claros no início do seu mandato: enquanto dizia estar agindo sem "viés ideológico", aplicava uma agenda ideologizada até o último fio de cabelo. Ou seja, o problema nunca foi com ideologia, mas sim com a ideologia dos outros. É a mesma coisa com movimentos tipo "Escola sem partido". Eles têm partido. Mas não aceitam outro partido, o ponto é esse.

Dito isso, a sociedade é plural, já na sua própria conformação social — é uma sociedade de classes, de interesses colidentes e antagônicos. Isso permite vieses e abordagens diferentes. Uma manchete jornalística jamais será neutra, por exemplo. A disposição e escolha das palavras, a estrutura da frase, tudo isso diz respeito ao conteúdo de fundo que se quer mostrar.  Imparcialidade é um mito.

Estou fazendo essas perorações porque li há pouco esta notícia. Reporto o leitor a ela; em apertada síntese, trata-se de episódio em que foi judicialmente determinada a retirada de um tigre (isso, o animal) de uma chácara, haja vista não haver regularidade em sua posse, e sua consequente transferência para o zoológico de Curitiba. Onde o bicho veio a perecer. O grande ponto da matéria: não teria sido melhor deixar o pobre Rajar na chácara onde "não sofria maus tratos e gozava de boa saúde e cuidados", ao invés de cumprir a letra fria da lei e determinar sua remoção? Dura lex sed lex, mas ... É assim? 

Minhas observações sobre ideologia e parcialidade estão no seguinte detalhe: do que se depreende do conteúdo do portal onde a aludida matéria foi postada, a linha editorial é privatista, vale dizer, o direito ambiental é abordado mais da ótica do sujeito privado do que da do suposto interesse público tutelado pelo Estado. "Suposto" porque temos aqui um campo enorme para discussão, por exemplo a defasagem da tradicional distinção entre público e privado que aparece em Ulpiano, e se aquilo que o Estado defende é mesmo interesse público ou se apenas reflete idiossincrasias do corpo dirigente de ocasião.

Um longo e profícuo debate: mas fiquemos com esse aspecto de viés, mais ou menos liberal — no clássico sentido das Luzes. Ainda que eu rejeite esse individualismo típico, na medida em que ainda não está enriquecido pelas dimensões posteriores de direitos humanos, não discordo da crítica à intromissão estatal (no sentido judicial, no caso da noticia aqui comentada) na esfera pessoal para além do necessário. Novamente aqui se abre um leque: qual a medida do necessário, qual o diâmetro da esfera pessoal e assim por diante. 

Talvez tudo se resolvesse à base do bom senso. Que, naturalmente, também não é conceito neutro, basta que se problematize o próprio adjetivo "bom". Complicado. Sigamos nossa faina de juristas, sem reinventar a roda, claro, mas também sem perpetuarmos cacoetes. 

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