O Superior Tribunal de Justiça decidiu em sessão virtual do dia 27 manter as investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes no Rio de Janeiro. A relatora do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) nº 24, ministra Laurita Vaz da Terceira Turma, ressaltou a excepcionalidade da federalização, que demandaria três pressupostos: "(1) a existência de grave violação a direitos humanos; (2) o risco de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais; e (3) a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas". Segundo a relatora, tais pressupostos não se encontram presentes: se os fatos sob apuração são gravíssimos, por outro lado o país não se encontra sob risco de responsabilização internacional e tampouco, diz a relatora, há evidências de desídia ou de incapacidade por parte das autoridades fluminenses em elucidar o caso. De tal feita, o deslocamento da competência sobre o feito para a esfera federal, como pedia o MPF (desde a época de Raquel Dodge), foi julgada improcedente por unanimidade.
É difícil para nós opinarmos com propriedade sem termos tido acesso aos autos. É notório que as milícias têm penetração no aparato estatal. O sociólogo José Cláudio Souza Alves, antigo estudioso do tema, chega a afirmar que "a milícia é o Estado". É o clássico formato mafioso, afinal, o de policiais e agentes (de altos escalões inclusive) "no bolso" dos capi. Nesse sentido, é público e notório que o estado do Rio de Janeiro há tempos convive com o problema e, diante do outro fato óbvio que é a participação da milícia no assassinato de Marielle e Franco, há que presumir que isso influirá negativamente nas investigações. O tempo transcorrido é um mau sinal, por exemplo- já são mais de dois anos da data do crime e até o momento os mandantes não foram localizados. Por outro lado, tenho dúvidas se a federalização do caso traria resultados melhores: ainda que os trabalhos sejam tocados por agentes (do MPF e PF) locais, o centro nevrálgico continuaria na longínqua Brasília; além disso, pela própria natureza oculta das milícias não se pode rejeitar a priori também sua eventual infiltração federal. Somemos a isso o fator bolsonarista com seu intuito declarado de controlar a Polícia Federal, mote da deserção de Sergio Moro. Não há como evitar que sombras sinistras pairem sobre os trabalhos, por mais brilhantes e isentos que busquem ser.
Há um detalhe secundário que me preocupou no voto da ministra. É quando a magistrada aprecia o pedido do Ministério Público do Rio de Janeiro para que se apure o vazamento de peças do inquérito que deveria ser sigiloso. A ministra aquiesce que houve vazamento e determina "à Polícia Federal a instauração de inquérito para apurar eventual delito e sua autoria", mas registra que tais vazamentos para a imprensa ocorrem com frequência e que "os jornalistas se valem da prerrogativa de manter o 'sigilo da fonte'" e "até hoje, os tribunais não os responsabiliza[m] por tais publicações". Como ler isso sem pensar que, no que dependesse da ministra, os jornalistas que publicam vazamentos deveriam ser responsabilizados? Caso assim seja, é atentatório contra a liberdade de imprensa. É verdade que há informações sensíveis que o interesse público quer manter em sigilo (no caso aqui e de inquéritos policiais em geral, o risco de se comprometer as investigações); mas há outra faceta do interesse público que demandará exatamente que se quebre tal sigilo. Pensemos de Watergate à Vaza Jato, passando pelo Wikileaks. Em minha opinião, o segredo é sempre ruim. Isso no que tange à imprensa, bem entendido. Estou falando da liberdade de informação. O agente público para o qual há dever funcional de sigilo fica vinculado, naturalmente, ainda que conforme o caso concreto isso possa ser mitigado, sobretudo quando altas questões de direitos humanos estiverem envolvidas.
No imagem abaixo está o voto para download. Pode ser lido diretamente no sítio do STJ, aqui.
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