"O direito é criado pelo homem, é um produto tipicamente humano, um artifício sem entidade corporal, mas nem por isso menos real que as máquinas e os edifícios." - Gregorio Robles

14.10.22

Da mercantilização do acesso ao Judiciário

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A pandemia pegou a todos de surpresa, lembram? Em meados de março de 2020 a OMS decretou o estado e lá fomos nós para o isolamento, trancafiados em casa e com medo do que poderia acontecer dali pra frente. Evidentemente isso teve consequências das quais até hoje, fins de 2022, não nos recuperamos totalmente, no ponto de vista psicológico, social e, o foco deste texto — financeiro.

A menos que faça parte do alto funcionalismo, das classes abastadas ou, no geral, que possua austera disciplina financeira, não é usual que a pessoa tenha, digamos, 4 mil reais em conta corrente para livre disposição imediata. Somos um país de endividados, os números mostram. O Brasil tem recordes de 79,3% de famílias endividadas, eis a realidade nacional em setembro de 2022. É a vida real à qual o Judiciário brasileiro, por elitismo e preconceito de classe, não consegue se sintonizar.

Explico. Refiro-me à questão da justiça gratuita, corolário do direito fundamental ao acesso ao Poder Judiciário, mas desgraçadamente concedido com tanta mesquinhez pelos juízos afora, ao menos no Rio de Janeiro, onde exerço a prática da Advocacia. Diz o Código de Processo Civil:

Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.

A questão é a hipossuficiência econômica para um litígio processual. É preciso pagar aluguel, contas, e sobretudo providenciar alimentação; para si e para a família! E medicamentos, escola, tributos e lá vai uma longa lista. 

O que sobra disso para gastar com um processo judicial, expediente em si desagradável, demorado, muitas vezes humilhante e constrangedor, e de desfecho incerto?

Entendem aonde quero chegar? Não me parece que o acesso a um direito fundamental deva ser tratado sob a ótica da pecúnia.

Ou paga ou nada feito.

É assim que tenho visto em minha prática. Sedimentado o "posicionamento no sentido de que o não recolhimento das custas iniciais acarreta o cancelamento da distribuição" blá blá e dá-lhe canetada mandando para o limbo a pretensão da parte autora.

Ou paga ou nada feito.

Veja-se que o CPC, mais generoso que os magistrados que deveriam lhe zelar, prevê por exemplo a gratuidade concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais (art. 98, §5º) e o parcelamento ou pagamento ao final (idem, §6º). Mas como isso é analisado friamente por suas excelências! No limite exigem que a parte autora abra a bolsa ou a carteira para mostrar quantos vinténs há lá para, só então, decidir se concederá a gratuidade. E negá-la. Estou exagerando, claro.

Percebam que não me refiro aos grandes litigantes. Estou falando do populacho. Da aposentada que mora no Méier, por exemplo, cuja desventura me inspirou a escrever este post.

Não pagou, nada feito. Até a abertura de crediário nas Casas Bahia é mais facilitada e menos humilhante.

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