"O direito é criado pelo homem, é um produto tipicamente humano, um artifício sem entidade corporal, mas nem por isso menos real que as máquinas e os edifícios." - Gregorio Robles

25.3.22

Do Estado e seus detratores

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Há tempos não me deparo com uma literatura jurídica das que fazem a cabeça girar. Isto é, daquelas que falam mais ao coração do que à monótona decoreba de artigos de lei. Isso não é devidamente valorizado porque uma boa escrita não cai em concurso, afinal; a elegância na escrita cede lugar à objetividade fria. O trágico é que nem mesmo essa objetividade costuma dar conta do recado — é possível escrever bem de forma objetiva, afinal —, de modo que o impera mesmo é o discurso emburrecedor e simplório.

Ah, mas Friedrich Müller. Seu assunto, o pós-positivismo, é abordado de forma etérea e rebuscada e exige certo esforço do leitor, mas seu "O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes" (São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2009) tem passagens realmente saborosas.

Por exemplo, que dizer disto?

Uma codificação de leis é o registro de uma luta de interesses, uma Constituição, o congelamento de uma guerra civil.

Ou disto?

Uma Constituição é organização da força.

Acho oportuno bater na tecla. Tanto Marx quando Weber, portanto linhas diferentes, estavam cientes do ponto: o Estado — e consequentemente o Direito oriundo dele — como detentor do monopólio da violência, como conditio sine qua non para a manutenção do tênue equilíbrio da sociedade de classes. Entender isso demitiza idílicas ilusões acerca da natureza estatal. Anos atrás postei aqui no blog um trecho de um autor de estirpe marxista exatamente sobre isso, com o apelo para que não idealizemos o Estado. Mas devagar com o andor que o santo é de barro. É que quando falo disso acho importante deixar algo claro: a crítica ao Estado aqui deve ser matizada para evitar a armadilha neoliberal, que prega o desmanche da máquina pública em prol da fria lógica de mercado. Pois ainda que instrumento da violência de classe, o Estado, de forma dialética, exatamente para manter o equilíbrio social desempenha papel protetivo para os estratos mais vulneráveis e para o interesse público em geral.

Nesse sentido, o desmanche do Estado — repito, ainda que ontologicamente seja instrumento de dominação de classe — implica em enfraquecimento da cada vez mais frágil teia de proteção social. Eros Grau fala isso, vide seu "O direito posto e o direito pressuposto", e o próprio Müller na obra já citada. Afinal diz Müller que o Estado de Direito burguês dialeticamente vai "para além de si" e "começa a explicitar um efeito politicamente libertador" para as camadas sociais para as quais ele não tinha sido "concebido". Nesse sentido, prossegue o jurista alemão, ele, o Estado, deve ser defendido contra "tendências regressivas".

Os corifeus do "Estado mínimo" discordam e querem deixar terra arrasada. O neoliberalismo é a versão mais cruel jamais assumida pelo capitalismo. Todas as necessidades humanas mais básicas são reduzidas a mercadoria: saúde, educação, moradia... Um produto, uma commodity. Há a grande massa de desesperançados que não pode pagar, mas... paciência, não? Aliás o neoliberalismo demanda um exército de reserva de desempregados constante — isso mantém o moral da classe trabalhadora baixo e garante uma mão-de-obra barata. Margareth Thatcher cortou o fornecimento de leite para crianças nas escolas públicas britânicas! É impressionante que essa ideologia esteja ditando até agora as pautas econômicas do planeta, desde o laboratório chileno pinochetista dos anos 70. Por que onde mais, ao extremo, esse paradigma pode funcionar se não em uma ditadura? É que há uma armadilha aí. O "Estado mínimo" que esses ilustres senhores defendem é contra o Estado Social, isto é, mínima deve ser a rede de proteção social responsável pela implementação dos direitos fundamentais (que nada mais seriam que mercadorias, com vimos). Não sendo o caso, o Estado pode ser máximo à vontade: para intervir contra os sindicatos e a luta organizada dos trabalhadores, por exemplo. Para manter tropas policiais armadas até os dentes para assegurar que as massas descontentes fiquem em seu devido lugar e assim por diante. O Estado deve ser mínimo para os pobres, em outras palavras. Que morram. Ao fim e ao cabo, na distopia ultracapitalista a vida também é ela própria uma mercadoria.

Também há aqueles que discordam da necessidade da defesa do Estado contra o retrocesso, mas neste caso à esquerda, em sua romântica aversão a tudo que é estatal — refiro-me aos anarquistas e aos conselhistas ("comunistas de conselhos"), para os quais sequer um Estado dirigido pela classe trabalhadora é aceitável. Equívocos, data venia, por toda parte. Falta uma compreensão dialética da realidade e a superação de mitos. Não é possível projetar "para já" a sociedade utópica do futuro. Há um longo caminho para chegarmos até ela. A abolição imediata do Estado hoje — caso isso fosse possível — seria um retrocesso civilizatório inimaginável. É coisa diferente quando, através de um longo caminho mais ou menos sinuoso, desenvolve-se a emancipação política na sociedade e fortalece-se mecanismos de democracia direta (incluindo o controle social da produção e da distribuição de riqueza), fazendo com que o Estado como o conhecemos deixe cada vez mais de ser necessário. É um processo histórico gradual, enfim. É a grande diferença de concepções entre anarquistas e marxistas e sobre o tópico me reporto ao "Estado e revolução" de Lênin.

Sigamos pois na defesa do Estado dito Democrático e Social de Direito. É pouca coisa, mas é o que de mais precioso temos, como disse Einstein sobre a ciência até então conhecida. E que isso seja mais e mais explicado, preferencialmente não por livros chatos.

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