A decisão de Gilmar Mendes ao, nas ADPFs 1259 e 1260, suspender trechos da Lei do Impeachment (1.079 de 1950), tem gerado celeuma na mídia. Dentre outras coisas, o ministro suspende o artigo 41 da aludida lei, que assim dispõe:
Art. 41. É permitido a todo cidadão denunciar perante o Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador Geral da República, pelos crimes de responsabilidade que cometerem (artigos 39 e 40).
A expressão "todo cidadão" cai, de modo que "somente o Procurador-Geral da República pode formular denúncia em face de membros do Poder Judiciário pela prática de crimes de responsabilidade" (a íntegra da decisão pode ser vista aqui).
Celeuma na mídia, como disse. Vi um agudo texto de Josias de Souza afirmando que a "autoblindagem de toga é imoral, despudorada e antidemocrática". O pensamento reflete grandes setores da mídia e da sociedade civil. Ao impedir que "todo cidadão" peça impeachment por crime de responsabilidade, o STF estaria se blindando contra a vontade popular; a "ditadura da toga" assomaria imune a críticas e poderia mandar e desmandar nos rumos da vida pública, isenta de responsabilidades.
Creio que o assunto deva ser encarado de forma mais sóbria.
De início friso que desde sempre sou crítico do Judiciário — como sou do Executivo e do Legislativo. Se o Estado enquanto instituição é passível de críticas de toda sorte, de Marx a Weber, a fortiori isso se aplica aos seus Poderes, seus braços instrumentais. Nesse sentido, posso elencar por exemplo o papel do Judiciário conforme seu caráter de classe (que é o mesmo do Estado do qual emana), qual seja, o de garantidor do status quo contra as classes oprimidas, e sua pequena legitimidade democrática por não passar pelo crivo popular como ocorre no Executivo e no Legislativo.
Porém, tudo na vida comporta contradições. Como já apontei mais de uma vez no blog (aqui, aqui), o Estado apesar de tudo também é garantidor do interesse público. É por isso que seu desmanche, como defende o neoliberalismo, é deletério para a sociedade (principalmente para os mais pobres). O Judiciário, sob essa perspectiva, acaba por se tornar bastião de resistência — daí sua função contramajoritária, isto é, de defensor das minorias nada obstante a vontade dominante dos detentores de poder.
Voltando à decisão de Gilmar sobre a Lei do Impeachment. Quem tem insistido na cantilena da "ditadura de toga" é basicamente a extrema direita, insatisfeita com o papel do Judiciário, em especial do STF, no enfrentamento ao bolsonarismo desde a pandemia pelo menos (em verdade todo o mandato de Jair Bolsonaro foi pautado no atrito com o Judiciário; que fazer, se foi um governo recalcitrante desde o início?). Ora, temos portanto um desconforto político contra um Poder cujas decisões, ainda que carreguem tinta política (nada é apolítico sobretudo na sociedade de classes) deveriam ser analisadas de um ponto de vista técnico.
Nesse sentido, onde está a pertinência em "todo cidadão" poder apontar crime de responsabilidade de ministros do STF, cuja atuação, repito, deveria ser abordada de forma técnica? Evidentemente ministros são passíveis de cometer crimes de responsabilidade e não é possível abonar isso. Mas parece que o PGR é a figura a que melhor comporta o múnus da denúncia. Isso garante rigor técnico e isenção institucional — maior segurança jurídica, por exemplo. É muito diferente de "qualquer cidadão", o que dá azo para oportunistas, arrivistas e toda a fauna que quer apenas colocar a melancia no pescoço para chamar atenção.
Retirar a prerrogativa de "todo cidadão" parece ferir o princípio democrático. Mas, novamente, em tudo há contradição. O "democratismo" na verdade é uma ameaça à democracia. A função contramajoritária, citada acima, protege minorias; a democracia afinal não é um cálculo meramente utilitário, numérico, onde a maioria manda e a minoria acata. Restringir o acesso de "todo cidadão" ao pedido de impeachment parece ser um forma de impedir, em prol da higidez de nossa democracia, a desestabilização por sabores políticos ou oportunistas (ou ambos, como sói acontecer). Está certo, portanto. Como quer que seja, a decisão de Gilmar é ainda liminar e o assunto ainda será debatido, com o equilíbrio que se espera, no plenário da corte.
Retirar a prerrogativa de "todo cidadão" parece ferir o princípio democrático. Mas, novamente, em tudo há contradição. O "democratismo" na verdade é uma ameaça à democracia. A função contramajoritária, citada acima, protege minorias; a democracia afinal não é um cálculo meramente utilitário, numérico, onde a maioria manda e a minoria acata. Restringir o acesso de "todo cidadão" ao pedido de impeachment parece ser um forma de impedir, em prol da higidez de nossa democracia, a desestabilização por sabores políticos ou oportunistas (ou ambos, como sói acontecer). Está certo, portanto. Como quer que seja, a decisão de Gilmar é ainda liminar e o assunto ainda será debatido, com o equilíbrio que se espera, no plenário da corte.

Nenhum comentário:
Postar um comentário