Não tem jeito, voltarei sempre à carga: o Sistema de Justiça brasileiro é deficitário em inúmeros aspectos e deixa muito a desejar. Inúmeros aspectos, vale dizer, naquilo que diz respeito à estrutura física, logística etc. e às pessoas que tocam a máquina. Creio que isso salte aos olhos de todos que participam do cotidiano forense, ao menos para aqueles do lado de fora do balcão, naturalmente.
Não é minha intenção cometer injustiças. Antes de tudo, é preciso ter empatia com a base da pirâmide, os serventuários que estão na linha de frente. Na maioria absoluta dos casos é uma posição sujeita a assédio moral e pressão — por parte do público e da chefia —, com todas as implicações que isso redunda na saúde física e mental. Quando as presidências dos tribunais acertam também precisamos tirar o chapéu. O Judiciário andou batendo muita cabeça na pandemia, falamos aqui no blog. Mas conforme as coisas vão se ajustando boas ideias têm nascido, como por exemplo o balcão virtual. Falo da experiência fluminense, claro, mas imagino que as coisas não têm sido muito diferentes pelo país.
Trocando em miúdos, há dificuldades mas há boas ideias, e é nessa contradição que os profissionais do Direito vão se movendo. Mas, insisto: noves fora, há muito a desejar. Podemos dizer sem medo de errar que isso tem bastante de mentalidade. Lembro de Trotsky, na linha da tradição crítica marxista, falando sobre o medo que o cidadão médio tem do "Estado", uma espécie de entidade supernatural e todo-poderosa. Falo do antagonismo entre a máquina estatal (aqui representada pelo Sistema de Justiça) e o indivíduo, uma espécie de tensionamento constante escrito com letras indeléveis nos anais da Teoria Geral do Estado.
Não adianta dizer que a clássica caracterização de Ulpiano ("direito público é o que diz respeito ao Estado romano, e direito privado aos interesses do cidadão") se encontra defasada, e que o interesse público nada mais é que o interesse dos particulares, não tendo o Estado interesse "por fora" senão o de seus próprios cidadãos. Não adianta, porque essa cisão segue marcada a ferro e fogo na testa do funcionalismo. O público e o privado parecem estar separados por um campo minado. Novamente, evoco a experiência cotidiana prática — a hostilidade paira no ar em qualquer repartição. Claro, há servidores de fina educação e atenção para com o público, e posso mesmo dizer que, como advogado, tem sido a maioria do que encontro. Mas não tem jeito. Há uma bad vibe rondando.
Jamais esquecerei uma vez em que, após a audiência em juizado especial cível, o meu cliente, autor da ação, sussurrou atordoado que ele que se sentira o réu, tamanha hostilidade recebeu da máquina. Grosserias, patadas e por aí vai. Meu Deus, para que serve o princípio da inafastabilidade da tutela judicial (art. 5º, XXXV da Carta: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito) se o jurisdicionado é tratado a pontapés? Exceção, dirão. É que o juiz (ou o chefe de cartório, o conciliador, o servidor, a tia do cafezinho etc.) estava em um mau dia. Às vezes alguém destoa mas não é regra e assim por diante. O primeiro problema que salta aos olhos aqui é que a prestação da tutela jurisdicional não pode estar condicionada a idiossincrasias pessoais. Por outro lado, que fazer se somos todos humanos e não máquinas? Aliás sou o primeiro a denunciar a robotização do Judiciário. De novo, são as contradições com que nos deparamos.
Somos um país de modernidade tardia, se é que a modernidade chegou. Mais de duzentos anos após as Luzes e cá estamos enfrentando pulsões obscurantistas. O Sistema de Justiça de um país não fica solto no vazio mas, antes, reflete os humores desse mesmo país. É uma longa jornada para a realização plena de um Estado Democrático e Social de Direito. Nessas coisas apesar dos pesares sigo sendo um eterno otimista, na medida em que, óbvio, jamais cessemos a denúncia do "estado da arte".
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