"O direito é criado pelo homem, é um produto tipicamente humano, um artifício sem entidade corporal, mas nem por isso menos real que as máquinas e os edifícios." - Gregorio Robles

9.12.19

Gargarella: a concepção elitista da Justiça


O texto abaixo é do jurista argentino Roberto Gargarella, e trata do nascedouro elitista do Judiciário e de propostas para dar-lhe um caráter propriamente democrático.

A concepção elitista da Justiça

Roberto Gargarella

O sistema judicial, tal como o conhecemos, nasceu sob premissas e princípios próprios de outra época. Premissas sobre as dificuldades da cidadania em tomar controle de seus próprios assuntos; sobre os riscos gerados pelos movimentos assembleistas; sobre a influência negativa que as paixões e interesses poderiam exercer no processo de tomada de decisões. Quero destacar, em especial, dois critérios sem dúvida relacionados com os anteriores e também entre si, como sendo determinantes para o desenho do esquema organizativo da justiça.

O primeiro critério pode ser resumido na ideia de "desconfiança democrática". Os "Pais Fundadores" (Founding Fathers) do constitucionalismo moderno, quase unanimemente conceberam as instituições, que logo foram incorporadas às nossas constituições, a partir dessa visão de desconfiança. A ideia era a de que, caso livres à própria sorte, as maiorias destruiriam os direitos das minorias. E também que seriam guiadas por interesses conjunturais e locais, em detrimento dos interesses gerais. Daí a desconfiança: as maiorias deveriam ser "contidas", evitando-se assim seus excessos naturais; deveriam ser "separadas" de seus representantes, para impedir que impusessem a eles suas demandas limitadas e de curto prazo; deveriam ser, enfim, "substituídas" por funcionários eleitos, para que eles -os governantes- decidissem não conforme as reivindicações majoritárias ou pautados por elas, mas sim tomando o próprio lugar da cidadania. Como se dizia então: "é de se esperar que os representantes do povo decidam melhor o interesse nacional do que o próprio povo em si".

O segundo critério ao qual me refiro se refere ao modo como, nesses momentos fundacionais, se pensou a imparcialidade- sobre como facilitar a tomada de decisões corretas, em situações de conflito ou de desacordo. A imparcialidade foi associada, então, a um procedimento de reflexão individual, ou de poucos, com conhecimento técnico especializado e isolados do resto. Essa visão de imparcialidade, vale dizer, difere substancialmente de outra concepção alternativa, que relaciona a imparcialidade a processos abertos de reflexão coletiva. Para dizer de forma menos abstrata: ao se fundar na primeira visão (a visão elitista), a justiça começava a se afastar da discussão democrática.

O sistema institucional que temos hoje é filho direto daquelas ideias. Não se tratam, como se vê, de concepções puramente retóricas, próprias de tempos antigos e que ficaram presas no passado, mas sim de ideias que transcenderam e acabaram incrustadas nas instituições que temos hoje. A "separação" que conhecemos -na Argentina e no mundo- entre representantes políticos e representados não é meramente o produto de uma conjuntura infeliz, de lideranças abusivas ou de uma classe dirigente ocasionalmente corrupta. Os abusos de poder dos quais falamos não são, tampouco, pura e exclusivamente o simples produto de governantes corruptos que destruíram os controles sobre o poder. Se fosse assim, bastaria substituir alguns funcionários por outros melhores; ou reparar alguns controles "quebrados" para voltar ao início, na situação ideal e desejada. Mas não é assim. Quero dizer, as dificuldades com as quais nos confrontamos não dizem respeito a problemas de conjuntura, mas sim a dificuldades e decisões estruturais.

Acontece o mesmo no âmbito da justiça. Há uma "sensação" de "distanciamento" dos juízes e de falta de vínculo entre a cidadania e a justiça; isto é, uma situação de "alienação" da população em relação ao direito (um direito que "fala" mas não compreendemos, que lemos mas que parece obscuro e alienígena, e que mesmo que seja "traduzido" continuamos sem nos identificar com seus propósitos e objetivos). É um erro grave, novamente, ver tais problemas típicos da justiça como apenas um produto de conjunturas particulares. É claro que ninguém duvida, em países como o nosso, que hoje contamos com um corpo judicial que deixa muito a desejar: mal preparado, às vezes corrupto, excessivamente sensível às demandas do poder econômico e muito dependente das pressões da política. Também aqui tais problemas transcendem o momento conjuntural e o elenco judicial que conhecemos. Novamente: se substituirmos o corpo judicial por outro mais competente, as linhas mestras do problema, sua razões de fundo, continuarão inalteradas.

Eis o que eu quero frisar: o sistema judicial segue construído sobre a ideia de "separação" ou "distância", e a decisão imparcial continua alinhada a uma visão elitista e separada da diálogo público. Em vista disso o debate público parece se contrapor à ideia de justiça; e a ideia de "decisão justa" tem sido expropriada do debate democrático. Portanto, em sistemas como o nosso a "última palavra" sobre as decisões constitucionais fundamentais- desde a decisão sobre o aborto; a validade de medidas econômicas; o significado da ideia de privacidade; o alcance das políticas de seguridade social; a possibilidade de uma "lei de imprensa"; a constitucionalidade das reformas sobre o Poder Judiciário; as mudanças no sistema eleitoral; e muitas e muitas outras, não estão nas mãos da discussão pública e sim da justiça.

Contra tal visão, gostaria de defender aqui, brevemente, uma leitura alternativa sobre a questão, que vê o vínculo estreito entre justiça e debate público, entre constitucionalismo e democracia. Defenderia, nesse sentido, um ideal regulativo para a matéria: o ideal da conversação entre iguais. Conforme essa leitura, os problemas coletivos devem ser resolvidos coletivamente, pela política -entendida como a discussão pública- antes de pela justiça. Vivemos em sociedades plurais e marcadas por nossas diferenças de critérios, e enfrentamos problemas públicos que têm sua origem nesses desacordos razoáveis. De modo que diante de nossas diferenças o que precisamos fazer é conversar para tratar de resolvê-las. Isso, ao invés de transferir essa decisão para a justiça- ou seja, ao invés de permitir que a justiça nos exproprie do conteúdo que mais nos importa.

Alguém pode dizer sobre isso: são utopias, fantasias estranhas ao direito, propostas desvinculadas da vida real. Por sorte, hoje contamos -aqui mesmo na Argentina- com bons exemplos práticos para refutar essas objeções comuns. Pensemos por exemplo na "lei de imprensa": o mais interessante que ocorreu, em torno dessa lei, não teve a ver com a decisão da corte a respeito nem com como este ou aquele governo a tratou. O mais interessante sobre tal lei foi a discussão pública em torno dela, em âmbitos diferentes e a partir de visões opostas. Através desse debate coletivo demonstramos que podíamos nos engajar na discussão, de forma responsável, comprometida e bem informada. Mas temos um exemplo ainda melhor. Pensemos na recente discussão sobre o aborto. Mais uma vez, a melhor coisa aqui não foi a decisão da Corte nem a política feita (ou deixada de ser feita) sobre o assunto. O melhor que tivemos foi o debate público realizado em torno do tema. Nas ruas, nas aulas e nos foros institucionais. Debate protagonizado, também e em especial, pelas adolescentes e mulheres pobres. Novamente ficou demonstrado que através do debate público, do diálogo coletivo, podíamos discutir adequadamente e melhorar, matizar e, então, modificar nossas posições iniciais a respeito.

Dito isso, entendo que de uma vez por todas devemos repensar não apenas questões conjunturais -como a justiça é composta, quais são seus membros, como os juízes decidem os casos que nos preocupam- e sim todos os critérios que seguem ditando a organização e funcionamento -os fins, conteúdos e alcances- do Poder Judiciário. Minha sugestão é, à luz dos exemplos citados, começar a pensar a justiça de outro jeito: não a partir de pressupostos e princípios elitistas, e sim, finalmente e de uma vez por todas, através do ideal de uma conversação entre iguais.