"O direito é criado pelo homem, é um produto tipicamente humano, um artifício sem entidade corporal, mas nem por isso menos real que as máquinas e os edifícios." - Gregorio Robles

2.8.19

O frio não mata ninguém


Com o atraso de quase uma quinzena o inverno acabou dando as caras em julho nas terras brasileiras- até 14 graus aqui na cidade, segundo o AccuWeather. Não é nada, não é nada, são temperaturas quase polares neste Rio quarenta graus. E pelo Brasil afora foi daí pra baixo, coisa de zero grau lá pelo sul. Digo "foi", pretérito perfeito, porque o clima tépido vai voltando, o inverno aqui é coisa de dias.

E vejamos: justamente pela excepcionalidade, esse frio severo para nossos padrões pode causar transtornos e consequências graves. A mais óbvia é o sofrimento das pessoas em situação de rua, expostas às intempéries e sem uma rede de proteção social. Em São Paulo neste início de julho, no mínimo cinco mortes. Em razão disso, vem a patrulha denunciar como crime inapelável gostar de frio.

Ora, dei o caminho das pedras acima: ausência de uma rede de proteção social. É à falência estatal (porque é o Estado, apesar dos pesares, que supre as necessidades sociais, como diz Eros Grau em seu "O direito posto e o direito pressuposto", o que em todo caso não exime a sociedade civil) que as mortes devem ser computadas, não ao frio em si, mera manifestação da natureza. Aliás quando falamos "Mãe Natureza" estamos dando-lhe compassivas tintas antropomórficas. Mas ela não é mãe (nem madrasta), boa ou má; é o que é, se me permitem uma tirada quase zen-budista. Recordo nesse sentido o capítulo "Natureza amoral" d'"Os dentes da galinha" do biólogo ianque Stephen Jay Gould.

Imoral, e quanto a isso não cabem tergiversações, é um sistema de competição de todos contra todos no desiderato único do lucro. Isso é ainda mais grave em uma sociedade atrasada e desigual como o Brasil, incapaz de garantir mesmo um teto sobre cabeças- uma necessidade tão primária que chamá-la de "direito humano" é quase um exagero, vide os animais e suas tocas e os neandertais em suas cavernas. E isso apesar dos belos objetivos fundamentais constitucionais sobre erradicação da pobreza (art. 3º), mostrando que a ordem pós-88 ainda é uma eterna promessa a se cumprir.

Não permita portanto que "lacrem" sobre você quando inadvertidamente expressar seu apreço por esse friozinho gostoso. "É a economia, estúpido!", na célebre frase de campanha de Bill Clinton. A culpa é do capetalismo, estúpido. O frio é inocente.