O Direito deve se adaptar à realidade social e não o contrário, eu disse tempos atrás em um pequeno post do meu primeiro blog. Tal blog já se encontra aposentado há muito tempo, para desalento dos meus dois ou três leitores. Mas ao longo do tempo despejei lá algum bom conteúdo e a dinâmica da vida sempre me faz voltar a ele, como agora, ao meditar nisso da evolução dos costumes sociais influenciarem diretamente sua organização normativa.
É que o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.903.273-PR, de relatoria da ministra Nancy Andrighi da Terceira Turma, em julgado de 24/08/2021 (DJe 30/08/2021), decidiu por unanimidade que passar adiante prints e mensagens do WhatsApp sem autorização do remetente pode configurar justa causa para indenização.
Eis as informações do julgado, conforme publicado no Informativo de Jurisprudência nº 706 (30 de agosto de 2021) da corte:
O sigilo das comunicações é corolário da liberdade de expressão e, em última análise, visa a resguardar o direito à intimidade e à privacidade, consagrados nos planos constitucional (art. 5º, X, da CF/1988) e infraconstitucional (arts. 20 e 21 do CC/2002).No passado recente, não se cogitava de outras formas de comunicação que não pelo tradicional método das ligações telefônicas. Com o passar dos anos, no entanto, desenvolveu-se a tecnologia digital, o que culminou na criação da internet e, mais recentemente, da rede social WhatsApp, o qual permite a comunicação instantânea entre pessoas localizadas em qualquer lugar do mundo.Nesse cenário, é certo que não só as conversas realizadas via ligação telefônica, como também aquelas travadas através do WhatsApp são resguardadas pelo sigilo das comunicações. Em consequência, terceiros somente podem ter acesso às conversas de WhatsApp mediante consentimento dos participantes ou autorização judicial.Na hipótese em que o conteúdo das conversas enviadas via WhatsApp possa, em tese, interessar a terceiros, haverá um conflito entre a privacidade e a liberdade de informação, revelando-se necessária a realização de um juízo de ponderação. Nesse aspecto, há que se considerar que as mensagens eletrônicas estão protegidas pelo sigilo em razão de o seu conteúdo ser privado; isto é, restrito aos interlocutores.Dessa forma, ao enviar mensagem a determinado ou a determinados destinatários via WhatsApp, o emissor tem a expectativa de que ela não será lida por terceiros, quanto menos divulgada ao público, seja por meio de rede social ou da mídia. Essa expectativa advém não só do fato de ter o indivíduo escolhido a quem enviar a mensagem, como também da própria encriptação a que estão sujeitas as conversas. De mais a mais, se a sua intenção fosse levar ao conhecimento de diversas pessoas o conteúdo da mensagem, decerto teria optado por uma rede social menos restrita ou mesmo repassado a informação à mídia para fosse divulgada.Assim, ao levar a conhecimento público conversa privada, além da quebra da confidencialidade, estará configurada a violação à legítima expectativa, bem como à privacidade e à intimidade do emissor, sendo possível a responsabilização daquele que procedeu à divulgação se configurado o dano.Por fim, é importante consignar que a ilicitude poderá ser descaracterizada quando a exposição das mensagens tiver como objetivo resguardar um direito próprio do receptor. Nesse caso, será necessário avaliar as peculiaridades concretas para fins de decidir qual dos direitos em conflito deverá prevalecer.
Acho que há uma coerência nisso. A "correspondência" do tipo penal do art. 151 do Código Penal ("Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem") não pode hoje continuar sendo considerada apenas a carta, ou seja, papel, envelope e selo carimbado pelos Correios. Hoje a ideia de correspondência transcende o formato clássico. É claro que os princípios do Direito Penal impedem uma interpretação extensiva para pior, por exemplo onde se diz "carta fechada" não se pode ler "torpedo" — a reserva legal é taxativa. Mas o que quero dizer é que com os tempos as coisas mudam e as legislações precisam acompanhar o ritmo. Sob pena de total defasagem. Com o livro eletrônico é a mesma coisa. Tempos atrás escrevi aqui no blog que a imunidade tributária para "livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão" (art. 150, VI, "d" da Carta) deve ser interpretada de forma atualizada. Não se protege com o comando constitucional o artefato de "papel", mas o veículo disseminador de cultura e informação. Se seu formato é eletrônico, bem, estenda-se a ele a imunidade.
Acho que é consenso, então, que correspondência hoje abarca as modalidades eletrônicas, zap zap inclusive. Talvez o ponto aqui seja outro: se faz sentido, diante do descomunal volume de compartilhamento adiante de prints e mensagens, manter o dito tipo penal de violação de correspondência. Não estou falando em consequências cíveis; havendo dano exsurge a obrigação de indenizar. Mas em matéria criminal há que buscar sempre a intervenção mínima. Também isso é questão de modernização.
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