"O direito é criado pelo homem, é um produto tipicamente humano, um artifício sem entidade corporal, mas nem por isso menos real que as máquinas e os edifícios." - Gregorio Robles

28.4.20

A ressaca do legalismo


O trecho abaixo é de Roberto Lyra Filho no clássico "O que é Direito" (1982). Comento após.

O legalismo é sempre a ressaca social de um impulso criativo jurídico. Os princípios se acomodam em normas e envelhecem; e as normas esquecem de que são meios de expressão do Direito móvel, em constante progresso, e não Direito em si.

Gosto desse trecho. O legalismo como a ressaca social de um impulso criativo jurídico, isto é, as necessidades da vida social, em constante movimento, são juridicizadas, transformadas em regras; ocorre então o fenômeno oposto: o movimento torna-se estático, rígido. É a ressaca do "legalismo", o do apego à letra fria da lei, que desconsidera o irrequieto e dinâmico contexto social que lhe deu origem.

O grande drama está nisto: não é possível garantir estabilidade e segurança jurídica às relações sociais, senão mediante um regramento estático.

Mas e se tal regramento estático for considerado dentro desse "Direito móvel, em constante progresso"?

É uma discussão já velha de guerra. Adentramos aqui os pórticos do pós-positivismo (neopositivismo, positivismo jurídico reconstruído). Não mais a ressaca "legalista" do apego à letra fria, mas a compreensão de que "a interpretação do teor literal da norma é um dos elementos mais importantes no processo da concretização, mas somente um elemento", como ensina Friedrich Müller ("Metodologia do Direito Constitucional"). O texto escrito é o ponto de partida mas a norma não se esgota nele. Este voto do ministro Villas Bôas Cueva do STJ vai no ponto:

O intérprete não deve se apegar simplesmente à letra da lei, mas perseguir o espírito da norma a partir de outras, inserindo-a no sistema como um todo, extraindo, assim, o seu sentido mais harmônico e coerente com o ordenamento jurídico. Além disso, nunca se pode perder de vista a finalidade da lei, ou seja, a razão pela qual foi elaborada e o bem jurídico que visa proteger.

Isso não quer dizer passar por cima do texto escrito. Não se pode dar guarida ao "solipsismo" que Streck tanto critica, o arbítrio do intérprete para decidir como bem quiser. Esse é outro extremo igualmente nocivo, talvez até pior. Aliás, pode ser que a interpretação literal seja justamente a melhor para o caso concreto; a pedra de toque são a Constituição e os direitos fundamentais.

Com todas essas considerações em mente, nada de ressaca. Ainda bem porque chá de boldo é horrível de engolir.

O post é ilustrado por "Young Man Reading by the Light" de Norman Rockwell (c. 1926).

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